Severance

Severance (Ruptura) é uma produção original da Apple TV, criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle, e traz um tema muito importante e debatido atualmente: equilíbrio entre vida pessoal e profissional (work life balance).

Nesse drama distópico, acompanhamos o dia a dia de trabalho de uma equipe de refinamento de macrodados da empresa Lumon. No primeiro episódio, conhecemos o protagonista Mark, que é subitamente promovido como chefe desse departamento. A equipe recebe a notícia que o chefe anterior não faz mais parte da equipe e também terão uma nova colega: Helly.

A grande questão é que nessa empresa os colaboradores passam por um procedimento de separação total entre a vida pessoal profissional, o qual chamam de “ruptura” e que é o título da série. Por meio dele, a empresa implanta um chip no cérebro do profissional, com o consentimento dele(a), que separa as memórias dentro do trabalho e fora dele..

Apesar das memórias separadas, os personagens na série continuam sendo os mesmos. Fora da empresa eles têm necessidades, gostos e desejos e dentro da empresa também, mas, por estarem em contextos diferentes, possuem também motivações diferentes. Dentro da empresa, as personagens gostam de imaginar quem são lá fora, se tem filhos, são casados e quais os seus hobbies.

A série introduz o conceito de work life balance de forma exagerada como é de se esperar em uma ficção.

Duas perspectivas opostas sobre a ruptura entre vida pessoal e profissional

Mark e Helly são os protagonistas e mostram lados opostos do desequilíbrio entre vida pessoal e profissional. Ele interpreta essa ruptura das duas vidas de forma positiva como meio de esquecer um problema pessoal. Ela interpreta como negativa, pois isso a impede de tomar decisões por causa da sua insatisfação no trabalho.

A princípio, quando acompanhamos Mark, descobrimos que ele tomou a decisão de fazer essa separação porque perdeu a esposa. Na opinião dele, ficar oito horas por dia sem lembrar do assunto é bom. Muitas vezes, os problemas da vida pessoal afetam o nosso desempenho no trabalho. Questões financeiras, problemas de relacionamento, conflitos com a família, entre outros desafios acompanham a nossa rotina no trabalho distraindo-nos, tirando nosso ânimo e nos deixando mais introvertidos ou estressados.

Sabemos que o trabalho pode ser um espaço para fugir dos problemas pessoais. Mergulhados nas demandas, metas e planejamento, nem nos lembramos do mundo ao nosso redor. Então, parece uma boa ideia estar no trabalho sem deixar que os fatores externos nos atrapalhem. Talvez esse caminho tenha seus riscos.

Na série também acompanhamos a personagem Helly que acabou de chegar na empresa e tem dificuldades de aceitar essa separação entre vida pessoal e profissional. Ela pede para falar com o “eu” pessoal dela (fora do trabalho) para dizer que não gosta do lugar e pedir demissão. Depois de várias tentativas, a empresa permite que ela grave um vídeo informando sua decisão. Entretanto, no outro dia, ela recebe um vídeo do seu eu pessoal sendo clara e direta: quem decide isso não é a Helly do trabalho:

“Helly eu vi o seu vídeo pedindo que eu me demitisse, (…) Entendo que você está infeliz com a sua vida aí dentro, mas você sabe que eventualmente todos nós temos que aceitar a realidade. Então aqui vai: eu sou uma pessoa, você não. Eu tomo as decisões, você não. (…) Seu pedido de demissão foi negado”.

Talvez essa seja uma das cenas mais marcantes da série, porque mostra uma grande contradição existente no mundo do trabalho. Interpretando a cena, seria como se seu lado pessoal te obrigasse a estar naquele local que você não gosta por alguma razão.

Já parou para pensar em alguma vez que você estava como a Helly, infeliz, mas falou para si mesmo “continue em frente”? De forma mais simples é como se você estivesse negando seu próprio desejo ou motivação.

Em seguida a essa cena, eles têm um diálogo igualmente marcante:

– Então eu nunca vou sair daqui? – Helly pergunta.

– Você vai sair às cinco, bem eles fazem escalonamento, então, será às cinco e quinze. Mas não vai se sentir assim, pelo menos não essa versão de você, de certa maneira. – Mark responde.

– Você tem família? – Helly pergunta.

– Eu nunca vou saber. – Mark diz.

– Eu não tenho escolha. – Helly afirma.

– Bem, toda vez que você se encontra aqui é porque você escolheu voltar. – Mark finaliza.

É realmente possível separar vida pessoal e profissional?

Um fato muito curioso é que a série mostra insatisfações apenas por parte da versão profissional dos personagens. Na rotina das atividades pessoais, as pessoas não se importam com a vida no trabalho, mas também se sentem desconfortáveis, porque quando as pessoas perguntam “o que você faz?”, ninguém sabe responder. Já a versão das personagens no trabalho gostaria de ter a oportunidade de vivenciar outras experiências fora daquele local.

Outro aspecto que vale ressaltar: os personagens que formam a equipe de trabalho não sabem por que o chefe anterior saiu. Apesar das relações entre os personagens serem esquecidas quando estão na rotina de atividades pessoais, eles conseguem cultivar relacionamentos no trabalho e, por isso, sentem falta do antigo colega e ficam incomodados por não saber o que aconteceu com ele. Em dado momento chegam a se questionar se ele havia morrido. Isso demonstra que, mesmo no contexto de trabalho, cultivamos relações, criamos vínculos e podemos nos preocupar, emocionar, divertir. Esses comportamentos não estão relacionados a cumprir as tarefas do dia a dia, mas influenciam diretamente os resultados da equipe.

Separar vida profissional e pessoal não parece ser uma solução viável e assertiva. Mesmo que, por muito tempo, ouvimos a máxima de que devemos separar essas duas instâncias, a verdade é que elas se relacionam profundamente e, justamente por isso, não faz sentido querer separá-las.

O psicólogo francês Yves Clot explica no seu livro A função psicológica do trabalho que o ato de trabalhar possui uma função importante na constituição das pessoas como sujeitos:

“Ninguém tem o poder de aniquilar a atividade pessoal do trabalhador.(…). A atividade é a apropriação das ações passadas e presentes de sua história pelo sujeito, fonte de uma espontaneidade indestrutível.”

Ou seja, quando estamos trabalhando, não existe um “eu” do trabalho que nada tem a ver com o “eu” fora do trabalho. As pessoas afetam o seu próprio trabalho com sua bagagem anterior e transformam a si mesmas a partir das experiências vividas no trabalho como um grande movimento de trocas coletivas.

Outra contribuição do autor é de que a atividade de trabalho é triplamente dirigida:

1. ao objeto que se está trabalhando ou objeto de trabalho. Na série, as personagens dirigem sua atividade ao objeto de trabalho deles: excluir dados considerados ruins de uma sequência de números criptografados. Eles se esforçam para bater a meta e ensinar a nova colaboradora a compreender o que precisa ser feito.

2.  ao outro/meio de trabalho. Essa dimensão envolve a relação das personagens com a chefia, colegas e clientes. Esse é um outro ponto essencial de compreendermos. No seriado, as personagens não sabem nenhuma informação a respeito do que estão fazendo e também não conhecem os clientes nem o produto final.

Essa falta de informação limita bastante a vida profissional dos personagens, já que eles têm conhecimento apenas das atividades que fazem, gerando uma grande curiosidade que os leva a buscar contato com outras áreas da empresa. Quando esses contatos são estabelecidos, eles descobrem que várias histórias e boatos sobre diferentes áreas são mitos. Isso mostra claramente que aquele ambiente, ou meio de trabalho, era permeado por ruídos de comunicação. Entretanto, ao ampliarem suas relações, isso muda, porque as personagens criam uma rede de apoio entre si. O problema é que, ao deixar o prédio, todas aquelas relações deixam de existir. Mesmo que os personagens se encontrem na rua, eles não vão se reconhecer.

3.  a si. O trabalho cumpre a função de formar quem somos. A série brinca muito com isso, uma vez que os mesmos personagens, por vezes, têm posturas muito discrepantes sobre um mesmo assunto ou situação. O Mark na vida pessoal, por exemplo, não superou a morte da esposa e possui dificuldade de se relacionar, enquanto o Mark do trabalho inicia uma relação amorosa com facilidade. No contexto pessoal, Helly é uma grande defensora da ruptura enquanto a profissional discorda veementemente do procedimento.

Diante disso, podemos nos fazer as seguintes perguntas:

• “Quem é você quando está trabalhando e fora do trabalho?” Você percebe uma grande mudança?

• Se você tivesse um eu pessoal e profissional separados, eles tomariam decisões muito diferentes?

• É possível pensar que poderia haver uma divisão entre você e você mesmo? Ou na medida em que o seu “eu” profissional não pode escolher ou tomar uma decisão, como pedir demissão, por exemplo, ele deixa de ser você?

Existem níveis de formalidade em diferentes ambientes, mas, nesse caso, a questão é mais profunda, porque queremos mostrar que o trabalho também forma a pessoa que você é.

Equilíbrio entre vida profissional pessoal é muito mais do que separações ou rupturas. É, na verdade, sobre integração e a capacidade de equilibrarmos essa relação que se retro influencia. Normalmente, quando dizemos que não há um equilíbrio entre essas duas partes da nossa vida, acabamos adoecendo.

Por isso, é interessante trazer o conceito de saúde do médico Georges Canguilhem. Ele afirma que a ideia de saúde está ligada a poder portar algo, portar a responsabilidade de seus atos. Assim, a saúde se relaciona com a possibilidade de desenvolver algo, não apenas viver dentro de um contexto, mas criar o contexto para se viver.

Ser saudável e manter esse equilíbrio entre vida pessoal e profissional é, então, criar um contexto no qual você tenha esses dois espaços de maneira satisfatória e de acordo com as suas prioridades.

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